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O drama da mesa posta: por que arrumar o prato virou uma forma de expressão

  • Foto do escritor: Maiara Rodrigues
    Maiara Rodrigues
  • 10 de nov.
  • 3 min de leitura

De um lado, o garfo alinhado milimetricamente ao prato. Do outro, uma toalha de linho propositalmente amassada, flores disformes e louças que parecem colhidas ao acaso.


Uma mesa posta minimalista com elementos assimétricos e iluminação natural.


O ato de montar uma mesa ou, em linguagem técnica, fazer a “mise en place” deixou de ser um gesto de hospitalidade para se tornar discurso estético. No drama da mesa posta contemporânea, o prato é palco, o gesto é manifesto e cada composição revela muito mais do que o cardápio do jantar.


Mise en place: do serviço clássico à linguagem visual


O termo francês mise en place significa literalmente “colocar em ordem”. Nas cozinhas profissionais, refere-se ao preparo dos ingredientes e utensílios antes do serviço. Mas, fora delas, o conceito ganhou outra dimensão passou da organização técnica à construção visual.


Com o crescimento das redes sociais, especialmente o Instagram e o Pinterest, a mesa deixou de ser apenas um suporte para refeições. Tornou-se um meio de expressão, uma extensão da identidade de quem a monta. Cores, texturas, alturas e materiais passaram a traduzir estilos de vida, valores e até estados de espírito.


Hoje, “montar a mesa” é um gesto performático. E como toda performance, carrega intenção, ritmo e narrativa.


Da simetria ao caos: o estilo como discurso


Durante décadas, a etiqueta à mesa foi regida por regras fixas: talheres em ordem, pratos centralizados, guardanapos dobrados com precisão. Essa estética, herdeira do serviço francês clássico, transmitia status e disciplina.


Mas a mesa contemporânea subverte essa lógica. O “caos intencional” com composições assimétricas, misturas de louças antigas e peças artesanais virou tendência. Trata-se de uma estética que valoriza a espontaneidade e rejeita o rigor excessivo.


O contraste entre o clássico e o despretensioso expressa um novo comportamento social: a busca pela autenticidade. Uma mesa desalinhada, com copos de formatos diferentes e flores colhidas no jardim, comunica uma estética da imperfeição, tão valorizada na era pós-digital.


Assim, a mesa deixa de ser apenas sobre o que se come, e passa a ser sobre como se vive.


A mise en place como gesto artístico


Artistas e chefs têm explorado a mesa como território poético. O ato de servir dispor, tocar, ordenar é carregado de simbolismo. Há quem compare o garçom ao performer e o prato ao quadro.


Em exposições recentes e instalações gastronômicas, o alimento se torna meio e mensagem. O artista coreano Lee Kang, por exemplo, cria composições efêmeras em que o jantar é tanto experiência quanto obra. Já coletivos de arte culinária exploram o ritual da mesa como um espaço de diálogo entre corpo, estética e convivência.


Essa “arte da mesa” transita entre o design, a fotografia e o comportamento. É efêmera, sensorial e profundamente humana.


Redes sociais e o “estilo de vida fotografável”


A ascensão das mesas no Instagram consolidou um novo tipo de mise en place: o da fotogenicidade. A disposição do prato passou a obedecer não apenas ao prazer de quem come, mas ao olhar de quem fotografa.


O enquadramento define a narrativa. O prato é centralizado, o copo ganha reflexos de luz, o guardanapo é posicionado em diagonal. Cada detalhe é pensado para o registro e não necessariamente para o paladar.


Essa lógica visual transformou o jantar em performance de autoimagem. Influenciadores de gastronomia e anfitriões amadores utilizam a mesa como assinatura estética. O estilo “natural chic”, o “vintage rural” ou o “minimalismo nórdico” são mais do que referências decorativas: são discursos identitários.


Em tempos de consumo simbólico, arrumar o prato virou uma forma de dizer quem se é ou quem se deseja parecer.


A ritualização do cotidiano


Por trás do gesto de dispor pratos e talheres, há também um movimento de reconexão. Arrumar a mesa é, em certa medida, um antídoto contra a pressa. É o resgate de um tempo mais tátil e consciente, onde o ato de preparar o espaço do comer vira parte do prazer.


No cotidiano urbano, a mise en place funciona como pausa. Colocar uma vela, escolher um tecido, dobrar o guardanapo são microgestos que reafirmam o valor do encontro consigo mesmo ou com o outro.


A estética da mesa, portanto, é também política: ela fala sobre ritmo, cuidado e presença.


O futuro da mesa: entre a performance e o afeto


À medida que a mise en place se transforma em linguagem artística e midiática, cresce também o risco do esvaziamento. Quando tudo vira cena, o gesto pode perder sua sinceridade.


Mas, entre filtros e composições, persiste um elemento que não se fotografa: o afeto. E é ele que, no fim, diferencia a mesa montada por estética da mesa preparada por intenção.


Talvez o drama da mesa posta não esteja na forma, mas na tentativa de equilibrar dois impulsos humanos o de exibir e o de partilhar. Entre o cenário e o sentimento, entre o prato e a presença, a arte está em encontrar o ponto de contato.

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