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Levar as sobras pra casa: por que ainda temos vergonha de pedir a famosa “quentinha”?

  • Foto do escritor: Ana Beatriz
    Ana Beatriz
  • 11 de jul.
  • 3 min de leitura

Mesmo em tempos de desperdício inaceitável e inflação alta, levar o que sobrou do prato ainda causa constrangimento. A pergunta é: por quê?


Mesa farta - pedir ou não pedir pra embrulhar pra viagem?
Mesa farta - pedir ou não pedir pra embrulhar pra viagem?

O almoço foi farto, o prato estava delicioso, mas não deu pra comer tudo. Você olha para a comida que sobrou, avalia a textura ainda perfeita, pensa no jantar de logo mais — e hesita. O garçom se aproxima e a cena clássica se repete: um leve aceno de cabeça, um “pode embalar pra viagem?” dito em tom quase de pedido de desculpas.


Mesmo em 2025, num mundo que fala cada vez mais sobre sustentabilidade, economia circular e combate ao desperdício, a simples atitude de pedir para levar o que sobrou ainda carrega uma carga invisível de constrangimento social.

Mas por que temos vergonha de pedir a quentinha?


Herança cultural, classe social e etiqueta silenciosa

Para entender esse incômodo, é preciso voltar no tempo — e olhar para o lugar simbólico que a comida ocupa no Brasil. Durante muito tempo, comer fora foi sinônimo de ocasião especial, de luxo. Um ritual onde os excessos deviam ser discretos, e qualquer gesto que remetesse à economia podia ser lido como falta de recursos.


A publicitária e pesquisadora em comportamento alimentar Letícia Gaio, sintetiza assim: “Pedir para embalar as sobras coloca em xeque o mito da fartura. Em um país onde comida é sinônimo de acolhimento, isso pode ser interpretado como ‘levar embora o que não devia sobrar’. Mas, no fundo, é só bom senso.”


De alguma forma, a prática ainda é associada ao “resto”, à comida que perdeu valor. E isso toca, sutilmente, em um desconforto de classe: quem leva a quentinha estaria “aproveitando demais” — ou sendo excessivamente prático em um lugar onde o ideal ainda é o esbanjamento velado.


Entre o invisível e o inevitável

O paradoxo é gritante: o Brasil joga fora mais de 27 milhões de toneladas de alimentos por ano, segundo a FAO, e restaurantes respondem por parte expressiva desse desperdício. Ao mesmo tempo, nunca se falou tanto sobre consumo consciente e segurança alimentar.


A vergonha de levar a comida está na contramão do discurso contemporâneo. Ainda assim, ela resiste. Em parte, porque não existe um protocolo claro para isso. Em muitos estabelecimentos, o cliente precisa romper um certo silêncio, dar o primeiro passo, correr o risco do olhar atravessado.


E o desconforto não está apenas em quem pede — mas também, muitas vezes, na resposta do restaurante. Há casas que embalam com orgulho e capricho, mas há outras que entregam a marmita com frieza, como se aquilo quebrasse a etiqueta do ambiente.


Um gesto pequeno, uma mudança profunda

Nos Estados Unidos e na Europa, o doggy bag é prática comum — e virou até código de hospitalidade. No Brasil, a evolução é lenta, mas visível: mais estabelecimentos oferecem embalagens adequadas, e há até campanhas de incentivo. Algumas marcas fazem disso um manifesto — valorizando quem leva não apenas as sobras, mas o respeito por aquilo que foi feito com cuidado.


Ainda assim, a mudança cultural exige mais do que logística. É preciso reformular a ideia de “resto”. O que sobra no prato não perdeu valor nutricional, nem simbólico. Muitas vezes, é ali que está o segundo tempo de um prazer — o almoço de amanhã, o jantar que não precisa ser comprado, o lanche improvisado com o que sobrou da massa artesanal da noite anterior.


Quando o gesto vira discurso

Hoje, quem leva a quentinha pode estar fazendo mais do que um gesto de economia. Está fazendo uma escolha política, ambiental e ética. Está dizendo que comida boa não merece o lixo. Está, de certa forma, prolongando o momento da refeição.


A pesquisadora Letícia Gaio resume com uma frase que poderia estar num cartaz de campanha: “Levar as sobras pra casa não é vergonha. Vergonha é desperdiçar o que poderia alimentar mais alguém — nem que esse alguém seja você mesma, amanhã.”


Se o futuro da alimentação é sustentável, então precisamos naturalizar gestos simples como esse. A quentinha precisa sair do campo do constrangimento e entrar no vocabulário do cuidado. Cuidado com o alimento, com o planeta, com o bolso. E, acima de tudo, com a própria fome.

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