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O peso da origem: o que realmente significa “artesanal”?

  • Foto do escritor: Ana Beatriz
    Ana Beatriz
  • 10 de jul.
  • 3 min de leitura

A palavra virou tendência, promessa de qualidade e argumento de venda. Mas será que ainda sabemos o que ela quer dizer?


Padarias artesanais viraram febre em São Paulo
Padarias artesanais viraram febre em São Paulo

Pães, queijos, cafés, chocolates, molhos, cervejas, embutidos. A lista de produtos que se anunciam como artesanais cresce a cada semana — nas gôndolas de supermercado, nos cardápios de restaurantes, nas feiras de bairro, nas vitrines de e-commerce. O rótulo, hoje, carrega um valor simbólico forte: remete ao feito à mão, ao pequeno, ao cuidado individualizado.


Mas em tempos de consumo acelerado, o que realmente significa “artesanal”?E por que essa palavra, que nasceu da oposição à indústria, agora parece circular dentro dela?


Um termo nobre, mas escorregadio

“Artesanal” vem de “artesão” — aquele que trabalha com as mãos, que domina um ofício, que imprime um saber próprio ao objeto produzido. No campo da alimentação, isso se traduz historicamente em técnicas passadas de geração em geração, tempo de preparo não padronizado, ingredientes minimamente processados e interferência humana constante.


Mas hoje o termo perdeu o lastro técnico e virou, em muitos casos, uma linguagem de marketing. Produtos industrializados se dizem artesanais por terem uma embalagem rústica. Outros se ancoram em elementos visuais: um logo que parece feito à mão, uma tipografia que remete ao rural, uma narrativa de família que nunca existiu.

É o fenômeno da “artesanalização do industrial” — em que a origem é estilizada, mas nem sempre autêntica.


O artesanal como desejo: o que buscamos, de verdade?

A explosão da busca por produtos artesanais está diretamente ligada a um sentimento contemporâneo de desconexão. Vivemos cercados de processos automatizados, plataformas digitais, refeições apressadas. O artesanal promete o oposto: contato, textura, afeto.


Quando escolhemos um queijo artesanal da Serra da Canastra em vez do fatiado de fábrica, não estamos comprando apenas o sabor. Estamos comprando a ideia de que alguém cuidou daquilo. De que existe uma história por trás, e não apenas uma linha de montagem. Esse desejo é legítimo — mas também é vulnerável. Porque em meio à saturação do discurso artesanal, fica cada vez mais difícil saber o que é de verdade, e o que apenas parece.


O tempo como ingrediente (e limite)

A produção artesanal exige mais do que técnica: exige tempo. E o tempo, hoje, custa caro. Fermentar um pão com levain por 24 horas, maturar um salame por 60 dias, curar um queijo por 8 meses — tudo isso desafia a lógica de giro rápido e margem alta.


É por isso que a escala artesanal raramente se sustenta em grande produção. Quando se tenta produzir em massa e continuar chamando de artesanal, o risco é abrir mão justamente daquilo que fazia o produto ser especial: a singularidade.


E isso levanta uma questão ética: até onde um produto pode ser artesanal e ainda assim ser escalável? Qual é o ponto em que o artesanal se transforma em “artesanalizado”?


O valor simbólico e a responsabilidade de quem usa o termo

Chamar algo de artesanal não é só uma jogada estética — é um compromisso. Com a origem, com os métodos, com o consumidor. Ao colocar esse rótulo, o produtor assume que há ali uma relação mais direta com a matéria-prima, um olhar cuidadoso sobre o processo, uma cadeia de produção menos impessoal.


Ao mesmo tempo, o consumidor também tem um papel. De investigar, perguntar, entender. De perceber que artesanal não é sinônimo de perfeito, nem sempre de bonito, e raramente de barato. É sinônimo de tempo, de risco, de variação — e, justamente por isso, de verdade.

“Artesanal” não é só o que é feito com as mãos. É o que carrega intenção.É o que resiste à padronização, mesmo com imperfeições.É o que carrega dentro de si a memória de um gesto — mesmo quando a palavra já se tornou moda.


Se quisermos manter o valor do artesanal, precisamos proteger o sentido e o uso da palavra. Porque, na cozinha ou na prateleira, a origem pesa. E o que nos alimenta não é só o alimento — é também o vínculo que criamos com quem o faz.

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