O mito da “comida de verdade”: o que isso diz sobre nossa relação com a indústria
- Ana Beatriz

- 23 de jul.
- 2 min de leitura
Nas prateleiras, nas redes sociais e até nos cardápios de restaurantes badalados, uma expressão aparece com frequência crescente: comida de verdade. Mas o que ela realmente significa? De onde vem essa distinção entre o que seria “de verdade” e o que, por consequência, seria... de mentira?

Mais do que uma tendência de marketing ou um modismo, o apelo à comida “real” revela um movimento social profundo, que mistura saudade, desconfiança e uma busca por pertencimento. E, inevitavelmente, coloca a indústria alimentícia no centro do debate.
Uma resposta ao artificial
O termo “comida de verdade” geralmente é usado para designar alimentos minimamente processados, preparados em casa, feitos com ingredientes naturais e — de preferência — locais. Ele surge como contraponto ao universo dos ultraprocessados, fast food, conservantes e fórmulas difíceis de decifrar nos rótulos.
É uma tentativa de recuperar a conexão entre quem come e quem cozinha, entre o alimento e sua origem. Ao contrário do que se compra pronto e se consome em minutos, a “comida de verdade” exige tempo, afeto e, muitas vezes, memória.
O efeito colateral: a demonização do industrial
Ao criar um ideal de pureza alimentar, a expressão também carrega um viés de julgamento. Afinal, se existe a comida “de verdade”, tudo o que foge a esse padrão estaria associado a algo menos digno, menos saudável ou menos autêntico. E é aí que surgem os dilemas.
A indústria alimentícia, embora alvo de críticas legítimas — como o excesso de sódio, açúcar, gordura e aditivos em produtos industrializados — também foi responsável por democratizar o acesso à alimentação, facilitar a vida em centros urbanos e, em muitos casos, garantir a segurança alimentar em larga escala.
A visão maniqueísta entre “natural” e “industrial” muitas vezes desconsidera os contextos sociais, econômicos e até culturais que moldam a alimentação das pessoas.
Comer bem virou privilégio?
Sim, em muitos sentidos. Preparar uma refeição “de verdade” demanda mais do que vontade: exige tempo, acesso a ingredientes frescos, conhecimento culinário e recursos financeiros. Para grande parte da população, a praticidade oferecida pela indústria é não apenas conveniente, mas necessária.
Ao transformar a “comida de verdade” em um ideal absoluto, há o risco de culpabilizar quem não consegue ou não quer segui-lo, criando uma nova forma de distinção social à mesa.
O marketing se apropriou?
Claro. Marcas e produtos surfam na onda do discurso da autenticidade: “feito como na casa da vovó”, “sem conservantes”, “só ingredientes que você reconhece”. Até mesmo pratos ultraprocessados passaram a vestir o rótulo da comida caseira, numa tentativa de conquistar um consumidor cada vez mais exigente — e desconfiado.
Essa apropriação do discurso acaba esvaziando o sentido original da “comida de verdade”, transformando um conceito afetivo em mais uma estratégia publicitária.
O que realmente importa
Talvez a discussão não devesse girar em torno do que é “de verdade” ou não, mas sim da qualidade das escolhas, da transparência na produção e do respeito ao contexto de quem consome.
É possível encontrar equilíbrio: questionar os excessos da indústria, sim, mas sem cair na armadilha de um purismo alimentar inalcançável. Celebrar os ingredientes frescos e o preparo artesanal, sem desprezar os avanços que tornaram a comida mais segura e acessível.
Afinal, comer bem é, antes de tudo, comer com consciência — e sem culpa.
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