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Cortes e culturas: o que separa (e aproxima) o gado brasileiro do argentino

  • Foto do escritor: Tali Americo
    Tali Americo
  • há 12 minutos
  • 3 min de leitura

Quando o assunto é carne, poucas rivalidades são tão saborosas quanto a de Brasil e Argentina. Os dois países dividem a paixão pelo churrasco, mas divergem — e muito — na forma de cortar, preparar e entender o que é uma boa carne. Por trás de um simples pedaço de picanha ou bife de chorizo, há séculos de história, colonização e tradição que moldaram dois estilos distintos de se relacionar com o gado.


Cortes de carnes argentinos são diferentes dos cortes brasileiros
Cortes de carnes argentinos são diferentes dos cortes brasileiros

A origem de duas culturas carnívoras


O Brasil e a Argentina compartilham raízes pecuárias antigas, mas seus caminhos foram traçados por contextos coloniais diferentes.

No Brasil, o gado chegou com os portugueses, no século XVI, e se espalhou pelo Nordeste e interior do país, acompanhando as rotas de desbravamento. O rebanho era rústico e servia tanto para o trabalho quanto para o consumo. Já na Argentina, foram os espanhóis que introduziram o gado nas vastas planícies da pampa, onde ele se multiplicou livremente. Ali nasceu a figura do gaúcho, símbolo nacional, e uma cultura que enxerga a carne como essência da identidade argentina.

Enquanto o Brasil consolidava uma pecuária extensiva e diversificada, a Argentina se especializava em carne de alta qualidade para exportação, desenvolvendo um sistema de cortes e classificação que valorizava o marmoreio, a maciez e a pureza da raça — especialmente o Angus, originário da Escócia, que encontrou clima ideal nas pastagens frias do sul argentino e uruguaio.


Cortes: o mesmo boi, duas anatomias


A principal diferença entre os dois países não está no boi, mas em como ele é dividido.O corte argentino segue o modelo europeu, com peças grandes e aproveitamento longitudinal — ou seja, o animal é cortado de forma que as fibras fiquem longas e os pedaços mais uniformes. Já o sistema brasileiro, influenciado pela tradição portuguesa e posteriormente americana, é transversal: as fibras são cortadas de forma a destacar partes menores, como a picanha ou a alcatra.


Picanha x Bife de chorizo


A picanha, símbolo absoluto do churrasco brasileiro, é praticamente desconhecida fora do país. Na Argentina, essa parte do traseiro do boi é dividida em dois cortes diferentes: o bife de chorizo (contrafilé) e o bife ancho (entrecôte). Ou seja, o que o brasileiro chama de picanha é, para o argentino, apenas o final de outro corte — e dificilmente seria separado para ser servido sozinho.

Enquanto o brasileiro valoriza o sabor da gordura externa e o contraste entre maciez e suculência, o argentino prefere a carne mais limpa, servida mal passada e com ênfase no sabor puro do gado.


Contrafilé x Chorizo e Ancho


O contrafilé brasileiro é um corte nobre da parte superior do lombo, usado em bifes altos ou no churrasco. Já o bife de chorizo argentino é extraído da mesma região, mas cortado de modo mais espesso e com uma camada generosa de gordura lateral. O ancho, por sua vez, vem da parte dianteira do lombo e é o preferido dos parrilleros por sua textura marmorizada — o que garante maciez mesmo em cortes mais altos.


Raça do boi influencia no preço
Raça do boi influencia no preço


Angus, nelore e o valor do terroir


O tipo de boi também conta — e muito. No Brasil, predomina o Nelore, de origem indiana, adaptado ao calor tropical e conhecido pela carne magra e fibras longas. Já na Argentina, o Angus e o Hereford dominam, com marmoreio intenso e sabor amanteigado, resultado de pastagens frias e alimentação natural.


Mas essa fronteira vem se dissolvendo: o Brasil já é um dos maiores criadores de Angus do mundo, com produção concentrada no Rio Grande do Sul e em áreas de clima mais ameno. Hoje, cortes premium brasileiros rivalizam com os argentinos em qualidade e certificação, tanto em exportações quanto no mercado interno.


Dois modos de assar, duas filosofias


No Brasil, o churrasco é uma celebração social: fogo alto, cortes variados, longas horas de conversa e uma boa farofa ao lado.Na Argentina, a parrilla é ritual: brasa baixa, poucos cortes, sal parrillero e respeito absoluto pela carne.

Enquanto o brasileiro tempera, experimenta e divide, o argentino observa, espera e reverencia. Ambos têm razão — são apenas expressões diferentes de uma mesma devoção.


Carne como herança cultural


Essas diferenças dizem mais sobre identidade do que sobre técnica. O Brasil herdou dos portugueses a variedade e a mistura de sabores, enquanto a Argentina herdou dos espanhóis e dos gaúchos o rigor e a simplicidade.Nos dois países, a carne ultrapassa o prato: é memória, território e orgulho nacional.

E no fim das contas, seja uma picanha estalando na brasa ou um bife de chorizo suculento na parrilla, o que se serve à mesa é mais do que proteína — é história viva, temperada com o fogo de quem aprendeu, há séculos, a transformar o gado em cultura.

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