Paladar infantil: como os ultraprocessados estão moldando (e infantilizando) o gosto das novas gerações
- Ana Beatriz

- 4 de nov.
- 3 min de leitura
Durante boa parte do século XX, aprender a comer era um processo natural — feito à mesa, com o que havia disponível em casa, no quintal ou na feira. Hoje, a formação do paladar infantil é mediada por rótulos coloridos, mascotes de cereal e produtos “feitos para criança”, mas que pouco dialogam com o sabor real dos alimentos.
O resultado? Um paladar cada vez mais condicionado ao doce, ao salgado extremo e à artificialidade — o que tem impacto direto na saúde, na percepção de sabor e até na forma como os adultos se relacionam com a comida.
Quando o paladar era educação (não mercado)
Antes da explosão dos produtos ultraprocessados — especialmente a partir dos anos 1980 —, o paladar infantil era moldado pelo repertório alimentar da família. A criança comia o que os pais comiam: feijão, arroz, legumes da estação, frutas amassadas, caldos, ensopados.
Esses alimentos, ricos em textura e sabor natural, exigiam aprendizado sensorial — era preciso experimentar, mastigar, reconhecer diferenças sutis entre o azedo, o amargo e o salgado.
Essa exposição repetida criava o que nutricionistas chamam de memória gustativa — uma base que definia o gosto por toda a vida.
A era do sabor artificial
Com a industrialização dos alimentos infantis, esse processo mudou radicalmente. Bolachas recheadas, bebidas lácteas, sucos artificiais e produtos “com sabor de frutas” substituíram a fruta real — e o açúcar passou a ocupar o lugar do afeto.
A lógica é simples (e perigosa): quanto mais doce e fácil de mastigar, mais “aceitável” para o paladar em formação. O problema é que isso cria uma referência sensorial distorcida — o cérebro passa a reconhecer o doce intenso como padrão, tornando sabores naturais (como o amargo da couve ou o ácido da laranja) desagradáveis.
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), o consumo de açúcar em crianças aumentou 300% nas últimas quatro décadas, enquanto a ingestão de frutas e vegetais caiu pela metade em muitos países.
O cérebro e o vício do sabor fácil
O paladar infantil está intimamente ligado à recompensa cerebral.
Produtos ultraprocessados são formulados para ativar os mesmos circuitos de prazer que o cérebro associa a conquistas e conforto — uma engenharia sensorial que cria dependência.
Esses alimentos misturam gordura, açúcar e sal em proporções ideais para gerar o chamado “ponto de felicidade” (bliss point), definido por estudos de neurociência alimentar.
Isso não apenas cria preferência por sabores intensos, mas reduz a tolerância a alimentos naturais, que parecem “sem graça” em comparação.
O impacto na formação do gosto adulto
O paladar é plástico, mas tem janelas críticas de desenvolvimento — especialmente entre os 2 e 7 anos de idade. Nessa fase, o cérebro constrói o “mapa gustativo” que define o que é familiar, prazeroso ou rejeitável.
Crianças expostas precocemente a sabores naturais — frutas azedas, vegetais amargos, grãos, condimentos — tendem a manter hábitos alimentares mais equilibrados na vida adulta. Já aquelas criadas em ambientes ultraprocessados enfrentam mais resistência a novos sabores e maior propensão à seletividade alimentar.
O fenômeno da “infantilização do paladar adulto” é consequência direta disso: adultos que rejeitam sabores complexos, preferindo comidas doces, fritas ou com texturas homogêneas — reflexo de um paladar que nunca amadureceu.
O retorno ao sabor real
Felizmente, há sinais de mudança. Movimentos como o slow food, a alimentação consciente e o incentivo à introdução alimentar natural (sem ultraprocessados) buscam reconstruir a ponte entre criança e comida real.
Chefs e educadores também têm trabalhado para reaproximar o sabor da infância da natureza, com oficinas que ensinam crianças a experimentar, cheirar e cozinhar — devolvendo ao ato de comer sua dimensão de descoberta.
Estudos mostram que bastam 10 a 15 exposições a um mesmo alimento para uma criança aceitar um novo sabor. Ou seja: insistir com calma, sem disfarçar o sabor natural, ainda é a melhor receita.
Comer é aprender
O paladar é aprendido, não herdado.E recuperar essa aprendizagem é, em última instância, um ato de cultura e de saúde pública.
Voltar a ensinar as crianças a provar, reconhecer e respeitar o gosto dos alimentos reais é também resgatar o sentido original de comer: um gesto de curiosidade, vínculo e pertencimento.
Afinal, educar o paladar é formar cidadãos mais críticos — não apenas sobre o que comem, mas sobre o que consomem.
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