A comida que atravessou oceanos: a influência africana na culinária brasileira
- Tali Americo

- 2 de out.
- 4 min de leitura
A gastronomia do Brasil não é só a mistura de sabores, mas também de histórias, dores, resistências e celebrações. Os dezoito milhões de africanos que foram trazidos ao Brasil entre os séculos XVI e XIX deixaram marcas profundas — na língua, na religião, nos ritmos, e, claro, no que comemos e como comemos. Esta é a história de como ingredientes, modos de preparo e criatividade africana se incorporaram tão completamente ao nosso prato que muitas vezes esquecemos de onde vieram.

Das raízes africanas às mesas brasileiras
Quando falamos de “culinária africana”, estamos falando de uma diversidade enorme — de Senegal, Nigéria, Angola, Moçambique, Congo, e muitos outros. Cada povo trouxe ingredientes, plantas, técnicas. No Brasil, a escravidão funcionou como canal para que esses saberes chegassem — sob violência, sob dominação, mas também sob resistência.
Povos africanos introduziram ou reforçaram vários ingredientes que hoje julamos “nossos”: inhame, quiabo, dendê (azeite de palma), pimenta malagueta, coco, castanha de caju, amendoim. Eles também trouxeram técnicas: fritura, defumação, moer para criar farinhas de mandioca, secar peixes, fazer ensopados com diversas partes animais menos valorizadas. No tempo colonial, quando os escravizados não tinham escolha de ingredientes nobres, essas técnicas foram tanto o meio de sobrevivência quanto de invenção.
Ingredientes, pratos e adaptações
Alguns pratos ilustram bem esse entrelace entre culturas:
Vatapá: prato afro-brasileiro com origem iorubá, que usa pão molhado ou farinha, dendê, amendoim ou castanha, camarão ou peixe. Ele existe em várias versões — na Bahia, no Norte, no Nordeste —, com ajustes de ingredientes conforme disponibilidade local.
Acarajé: bolinho frito de massa de feijão-fradinho, também de origem africana, que ganhou nos mercados brasileiros uma identidade própria. É parte central da comida de rua da Bahia, ligada também ao candomblé, às religiões de matriz africana.
Quiabo com galinha: o quiabo é vegetal africano que se adaptou ao clima tropical brasileiro, e seu uso em preparos salgados foi amplificado por imigrantes e comunidades negras. Ele aparece tanto em pratos cotidianos quanto em acervos de receitas mais “nobres”.
Feijoada: talvez o mais emblemático. Tem versões para as quais há artigos e memórias que ligam sua origem ao uso das sobras das casas grandes e ao feijão preto trazido ou reforçado pela alimentação africana.
Também há pratos menos conhecidos fora de certas regiões, mas que preservam fortes traços culturais: caruru, abará, mungunzá, pirão.

O papel dos quilombos, religiosidades e resistência cultural
A cultura africana no Brasil não foi só transmissão de prática culinária. Foi resistência. Quilombos, comunidades interioranas e rurais fundadas por ex-escravizados, mantiveram métodos tradicionais, dietas baseadas em plantas, coaxas, uso completo dos alimentos e respeito pela terra. Pesquisas recentes nas comunidades quilombolas registram práticas alimentares que remontam diretamente às origens africanas — não só nos pratos, mas na cultura do plantar, colher, conservar e festejar.
A comida também se entrelaça com religiosidade: oferendas de comida (acarajé, caruru, vatapá) em religiões afro-brasileiras marcam não só devoção, mas preservação de identidade.
Dados históricos e estatísticas que cabem sobremesa
Enquanto há muitos mitos, há menos dados numéricos precisos publicados sobre quantidades de consumo específicos de pratos afro-brasileiros, mas algumas pesquisas e monografias (como da ETEC de Hortolândia e de Cidade Tiradentes) levantam os seguintes pontos:
Em estudos recentes, mais de 40% dos pratos típicos de restaurantes populares no Nordeste têm influência africana direta ou indireta nos ingredientes ou no modo de preparo.
Ingredientes como o dendê são particularmente concentrados no uso regional: Bahia, Pará, Maranhão. Nessas regiões, estima-se que restaurantes usem óleo de palma ou dendê em mais de 60% dos ensopados e preparos de peixe ou frutos do mar.
Plantas africanas adaptadas: o quiabo, o inhame, o amendoim, e algumas variedades de feijão-verde ou feijão-fradinho, que eram comuns no continente africano, foram cultivadas, adaptadas ao solo brasileiro e incorporadas ao cotidiano.

Personagens, memórias e chefs que contam essa história
Além das comunidades e das receitas, há figuras que trabalham para preservar e difundir essa herança:
Chefes, cozinheiros e empreendedores de comunidades afrodescendentes têm protagonizado projetos de gastronomia negra, valorizando ingredientes tradicionais, resgatando receitas ancestrais — inclusive usando formas de preparo que permanecem pouco industrializadas.
Pesquisadores como Flávia Portela (autora de Gula d’África) que documentam como certo tempero, aroma, modo de preparar sobreviveram às condições adversas da escravidão e, depois, da marginalização.
O presente e os desafios
Hoje, pratos de matriz africana fazem parte do “prato nacional”. O dendê brasileiro é requisitado em mercados internacionais; o acarajé baiano foi tombado patrimônio imaterial; ingredientes africanos estão sendo incorporados à alta gastronomia; festivais afro-gastronômicos crescem.
Mas há desafios:
Reconhecimento: muitas pessoas comem vatapá, caruru, feijoada sem saber ou sem valorizar suas origens africanas.
Apropriação cultural: uso comercial de tradições afro sem dar crédito ou retorno justo às comunidades que criaram ou preservaram os saberes.
Sustentabilidade de ingredientes: questões ambientais ligadas à produção de dendê, preservação de variedades vegetais (como inhame, plantas africanas adaptadas), impactos do monocultivo.

Um prato que alimenta identidade
A herança africana na culinária brasileira é viva. Ela não está no passado: está nas mesas de feijoada, nas panelas de dendê, nos quitutes da feira, nas celebrações religiosas, nos sabores que lembram avós, nos temperos que evocam ancestralidades.
Quando você gosta de acarajé ou sente o cheiro do vatapá, está saboreando séculos de história — de resistência, criatividade, pertencimento. E isso nos alimenta de forma muito mais profunda que qualquer receita.
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